Os dias do cerco
por Licínia Quitério
Vivemos os dias cercados de interrogações, as velhas e as novas interrogações. Calhou-nos um tempo em que tudo se transformou, se mudou. Perderam-se as certezas, perdeu-se a confiança. Ávidos de liberdade, aquela que só entendemos quando nos fecharam, queremos acreditar que passou, vai passar, e atirámo-nos aos dias de sol, de praia, de gente. Forjámos teorias conspirativas que nos explicassem o que não nos é dado entender. Temos a
tal espada a pique a um palmo da cabeça, reclamamos um dia, dois dias, todos os dias, livres de ameaças, de números, infinitas somas de mortos, de feridos, de quase mortos, de quase vivos. Vivemos a prazo, como sempre vivemos, mas desta vez damos por isso. Os chefes dizem, se vos portardes mal, voltaremos a fechar-vos. Os chefes também têm medo, mas o medo dos chefes é mais elegante, mais sóbrio, ou então desatinado, psicótico, à beira de toda a crueldade. Quando isto passar, que não há mal que sempre dure, valham-nos os proverbiais confortos, vamos abraçar-nos, amar como nunca ousámos amar, fazer tudo o que há por fazer, fazer os dias e as noites, como se fossem os primeiros. Quando está calor, os obedientes saem à rua com a máscara, mas deixam-na descair para o pescoço, numa meia prevaricação, oxalá a vizinha não leve a mal o desleixo. Estamos diferentes, para melhor ou para pior, ninguém pode saber. Lá mais para o inverno, ou no ano que vem, quando tudo isto ficar arrumado na caixa dos pesadelos, voltaremos a sorrir com todo o rosto, mesmo que um farrapo da tal nuvem arroxeada persista em passar nos nossos olhos que a si mesmos não poderão olhar-se.
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